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domingo, janeiro 14, 2007

Entrevista de Lisete Lagnado Curadora da Bienal

Lisette Lagnado, curadora da 27a. Bienal de São Paulo, fala sobre o evento que acontece em outubro e defende ser necessário acreditar em um pensamento nacional independente. Por Fernando Oliva e Marcelo Rezende. (Entrevista originalmente publicada na revista Bravo!,
edição de setembro de 2006)



Uma mostra internacional de arte que possa ser a um só tempo uma reflexão sobre o homem, o tempo e a sociedade – e um acontecimento para a discussão do papel do pensamento brasileiro em um contexto globalizado. Esse é o projeto elaborado pela curadora Lisette Lagnado para a 27a Bienal de São Paulo, que terá sua “seção expositiva” aberta ao público no próximo mês, com 118 artistas. O acontecimento não será o início, mas o instante culminante de um modelo que faz do debate um meio para o processo criativo e uma via de diálogo com o público, com seminários abertos, residências de artistas e projetos educacionais. O evento tem como tema Como Viver Junto, título de um curso dado pelo semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980) na década de 70. Nele, Barthes refletia sobre o ritmo de cada um frente a um ritmo maior, imposto por um grupo. Outra presença é a do artista Hélio Oiticica (1939-1980) e seu Programa Ambiental – o momento no qual a obra de arte está no mundo, e o espectador é um participante da experiência artística. Nesta entrevista, Lisette (uma brasileira nascida em 1961 no Congo, África) fala do papel da Bienal de São Paulo hoje, sua relação com as grandes exposições e a polêmica decisão em abolir as representações nacionais, nas quais os artistas eram expostos seguindo critérios de nacionalidade, além de serem indicados por seus respectivos governos.
BRAVO!: Qual a primeira Bienal que você viu e que tipo de lembrança e impacto teve sobre você ?
Lisette Lagnado: Como vocês sabem, eu não nasci no Brasil. A primeira Bienal que vi foi uma Bienal feita por Walter Zanini, em 1981. Cheguei no Brasil em dezembro de 1974 e aprendi português quando entrei na faculdade, em 1979. Eu cursei Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, mas tranquei, abandonei. Depois, segui mesmo jornalismo. Em 81, minha primeira experiência profissional aconteceu na extinta revista Arte São Paulo. Eu tinha lido no jornal que o artista francês Hervé Fisher iria mudar as sinalizações nas ruas de São Paulo. Então, por exemplo, quando você via a indicação Liberdade, e tinha uma flecha para cá, ele mudava a flecha para cima... Hervé Fisher, que é de origem canadense, era um professor da Sorbonne e tinha fundado a sociologia da arte. Então a minha entrada foi pela sociologia. Foi uma obra que me marcou muito... na verdade, duas. Fiquei fascinada por um trabalho do Cildo Meireles, A Bruxa, uma vassoura que vinha do terceiro andar do Pavilhão até embaixo. Uma vassoura de palha. E há ainda um trabalho do Tunga, que é maravilhoso, aquela em que se ouve ininterruptamente a voz de Frank Sinatra cantando o refrão de Night and Day. Então, naquele momento aquilo para mim foi um divisor de águas.
O impacto no público parece ser sempre uma questão para as grandes exposições. Essa é uma questão para a 27a Bienal ?
Em alguns casos, sim. Eloisa Cartonera (EC), um coletivo de Buenos Aires, por exemplo. Eles são uma editora, mas não vamos colocar estantes com livros. As pessoas vão se apresentar com seus textos inéditos e eles vão publicar. É uma editora que se define por só ter títulos latino-americanos. Em Buenos Aires, trabalham em parceria com os catadores de papelão, que fornecem o material para as capas dos livros. Eu estive com eles lá, e me explicaram que as caixas de vinho são as melhores. Já as de detergente não prestam, porque já vêm manchadas... Dos catadores, eles compram o papel por um preço cinco vezes maior do que o mercado. Em Buenos Aires, com a crise, você tem pessoas com mestrado e doutorado vendendo caneta na esquina... Tenho um pouco de medo dessa pergunta, porque tenho ressalvas à maneira como é tratada a questão da interatividade hoje. Porque tenho medo da idéia de playground, em que a pessoa chega e vê um troço que gira, que pesa seis toneladas, as crianças brincam etc., mas aquilo não tem um conceito. Nesta Bienal também estamos discutindo qualidade de vida, meios de sobrevivência num sistema globalizado...
A Bienal é marcadamente politica, ou seja, um comentário sobre um certa “atmosfera das coisas”, o estado contemporâneo. Você acha que isso é hoje uma exigência para eventos como a Bienal ?
Não necessariamente, depende de cada curador. Comecei acompanhando artistas que faziam intervenções urbanas, o que hoje está na moda. Então, não acho necessário, penso que você pode fazer uma Bienal que não seja política. Não seria a minha Bienal, porque não acredito que o artista, o autor, o filósofo, que ele seja um ser que vive dentro do ateliê e que consiga atravessar a Praça do Patriarca [centro da cidade de São Paulo] sem sentir alguma coisa, ou que não saiba o que é uma vez ter conhecido um amigo gay que teve de sair de casa e do país para enfrentar sua opção sexual. Até que ponto isso deve ou não entrar no trabalho? Eu, na verdade, penso que a gente é um só. Quando digo nós, penso nos autores – quem escreve, cria –, e acho que temos um compromisso com a sociedade. Hélio Oiticica caiu como uma luva pra mim, porque ele pensou na música, teatro, cinema, ele refez a questão do audiovisual, ele pensou a questão da não-narração – naquela época podia se fazer não-narração, mas hoje não dá para fazer isso, as pessoas voltaram para a narrativa.... Não quero dizer que esse é o único jeito de se fazer uma Bienal. Essa era a única maneira para mim de fazer a Bienal, e apostei nisso pensando que eu iria perder, porque quando coloquei o fim das representações nacionais, pensei “pronto, eu vou para a gaveta”.
Isso leva a pensar de que maneira a 27a Bienal se relaciona com modelos que acontecem em outras partes, que buscam repensar o modelo de exposição. Como a Bienal de São Paulo se afasta ou se aproxima da Bienal de Istambul ou de Moscou?
Eu acho que a Bienal de São Paulo andava um pouco voltada para dentro, e na cidade de São Paulo ela é mais do que um evento de dois meses. A idéia dos seminários é também de não deixar o pessoal enlouquecido, como em um festival de cinema, no qual você tem de ser estudante profissional para poder ver tudo. Me aproximo mais de uma noção de política cultural, em que você possa oferecer uma quinzena de filmes, ter projetos gráficos, ter intervenções. Aqui eu entraria com a questão das residências artísticas. A residência artística possibilita que o artista – que vive aqui por um, dois ou três meses – vá embora impregnado e com o imaginário pronto para desenvolver mais trabalhos. Por exemplo, Shimabuku (artista japonês radicado em Berlim), que veio aqui, passou três semanas, e ainda vai retornar. Algumas pessoas estão muito ocupadas e não puderam fazer todas as residências num tempo contínuo. Outro exemplo, Meschac Gaba (artista do Benim radicado na Holanda) teve que vir da Bienal de Sidney para poder participar da residência que está fazendo em Recife. Shimabuku foi embora com dez projetos. E nós vamos apresentar apenas dois aqui. Os outros oito ele vai apresentar em Londres, Berlim, Nova York e não sei mais onde. Um deles vai ter repentistas, imagine, ele é alguém que não fala português, e repentista é pura fala, quer dizer, ele descobriu que isso é a linguagem ancestral do rap. Acho importante que o Brasil, que a imagem do Brasil, que é uma coisa que se discute na Tropicália, não seja mais aquela coisa estigmatizada e tropical. Então a vivência é muito importante nesse sentido.
Para você, o caráter decisivo da Bienal é o da intervenção cultural? Não se pode imaginar mais a Bienal de São Paulo como o eco de um salão de Belas-Artes?
Com certeza. Eu diria que é um trabalho de caracterização cultural. Terminar com as representações nacionais significava acreditar num pensamento brasileiro autônomo, como o crítico Antonio Candido acredita, e como o Paulo Herkenhoff fez com a antropofagia [24a Bienal de São Paulo]. Ou seja, no lugar de partir com um conceito estrangeiro, de fora, tentar buscar uma especificidade nossa. Eu concordo com vocês sobre a gente estar mais próximo da Bienal de Istambul, mas nós temos 50 e tantos anos, não é? A Bienal de Istambul está se solidificando, a Bienal de Sidney ainda é uma Bienal da Ásia, embora esta última versão tenha sido excelente. A caracterização cultural, que foi um esforço que o Herkenhoff trouxe trabalhando não com um tema, mas com um conceito, a antropofagia como um dispositivo, e eu trabalhando Programa Ambiental, do Hélio Oiticica. Então existe essa questão da caracterização cultural, e acho que com o fim das representações nacionais consigo imprimir um projeto que tem uma autonomia.
Existe uma idéia de fundo na 27a Bienal que é muito forte: se recusar a ser vista como uma Bienal do Terceiro Mundo, o desejo de embaralhar um pouco a questão emissor–receptor: recusar a noção de que uma Bienal de país de Terceiro Mundo serviria apenas como vitrine para mostrar a arte dos grandes centros.
Eu acho que é uma Bienal que talvez até aceite um lugar, que é um lugar que eu não sei nomear. Temos cerca de trinta por cento de artistas da América do Sul. As maiores presenças são de países como México, Argentina e África do Sul. Olha, fui para a África com a cara e a coragem, porque os curadores africanos não queriam me dar os nomes dos artistas de lá. Eles perguntavam: “Porque que eu iria te dar?”. Há falhas, há, de tempo, orçamentárias. Não fomos para a Índia, o que eu acho grave. Paciência. Eu acho que desta vez tudo terá o mesmo peso, o mesmo valor, a mesma dignidade, a mesma importância. Nós vamos dar as mesmas condições, a mesma escada, o mesmo fio elétrico, o mesmo martelo para tudo mundo.
Podemos dizer que essa situação estaria relacionada à idéia de quebrar com o modelo metrópole-colônia, transmissor-receptor, dentro do próprio Brasil?
Sim, tem razão, mas na verdade eu queria ter feito melhor, a gente acabou recebendo mais pedidos do que tínhamos condições de fazer. No sentido da pergunta, o Meschac Gaba corresponde ao meu ideal. Ele é nascido no Benim, mora há muitos anos na Holanda e a residência dele foi em Recife. Então, a triangulação da escravidão está sendo reconstruída, e o trabalho dele é com açúcar, que era a matéria prima de exportação. Ele vai construir a maquete da cidade de Recife com blocos de açúcar, está trabalhando com o melhor maquetista do Nordeste para fazer isso.
Fazemos o acompanhamento mais próximo no caso dos residentes, porque tínhamos medo (é uma Bienal de risco) de que acontecesse uma espécie de exotização do Brasil. O Gaba está trabalhando com essas questões. Então o que aconteceu: ele chegou em Recife e o museu africano que ele havia apresentado na Documenta de Kassel está adquirindo novas peças. É fantástico. O grande talento da África está na música, e eu diria também a moda, eu senti isso quando estava no Congo. Foi uma experiência penosa, porque nasci na África, um lugar que vive um caos humanitário dos mais degradantes e voltei a minha infância: é um lugar onde se morre de Aids e de malária, na sua frente. Quando o Hélio Oiticica volta de Nova York, o único espetáculo que ele continua dizendo que é um show ambiental que vale a pena, um espetáculo válido, é a música. Acho ótimo começar com um seminário e terminar com a festa, e não colocar a festa na abertura. A gente ainda tem dois seminários, “Trocas”, neste mês, e um sobre o Acre, em novembro. Só fechamos em dezembro, com a música e as raízes africanas, simbolizadas por um show do grupo Konono nº 1, do Congo, com influências eletrônicas.
O que há de representativo e simbólico no Acre para a Bienal?
Quando eu cheguei ao Acre, o que mais me impressionou é que era uma terra da Bolívia, em primeiro lugar. E a partir do momento em que os seringueiros foram se instalando, comprando pedaços de terra e que, na sequência, eles pediram anexação ao Brasil, toda essa história. Tudo acendeu em mim uma questão, a dos Territórios Ocupados. Eu sou de família judaica, e sou a favor de dois Estados: o Estado palestino e o Estado israelense. Quando a Marjetica Potrc, a Susan Turcot e o Alberto Baraya chegaram, me perguntaram: “O que você viu no Acre?”. Eu falei: “A happy Palestine”. A possibilidade de uma Palestina feliz. Primeiro veio a questão do território, depois, quando você lê a história, evidentemente, você sabe que era um sofrimento atroz, que era vinculado à construção de uma ferrovia, à questão da modernização. Isso só foi ganhando interesse para mim em termos do que é a modernidade e a modernização, do que é a indústria de ferro chegando lá. Também existe a questão indígena, lá tem as florestas, e os povos da floresta, as lendas e os mitos. Depois, a gratidão, apesar de isso ser uma bobagem kitsch, mas quando você volta para lá e vê a gratidão das pessoas... Porque não é fácil, só tem vôo de madrugada para chegar lá, praticamente apenas uma companhia aérea, e com fuso horário de duas horas. Você pensa: “O que é ? Um boicote para chegar lá?”. E a capital é uma cidade tão bonita e organizada quanto Curitiba!
Assim chegamos ao “Como Viver Junto”, de Roland Barthes, que ao lado de Hélio Oiticica está na base conceitual e temática da 27a Bienal. Como esses dois autores dialogam?
São dois mundos diferentes. Às vezes, penso: será que é uma heresia com o Barthes o que eu estou fazendo? Sabe, eu tenho uma suspeita ética em relação a isso. Já com o Oiticica eu estou tranqüila, trabalhando com o Programa Ambiental. O Barthes é um sujeito delicado. O Oiticica é um sujeito que vai dizer: “Só derrubando furiosamente as condições da sociedade é que poderemos erguer algo de novo”. Acho que Barthes jamais escreveria uma frase dessas. O Oiticica tem uma fúria que não vejo no Barthes. Então acho que a gente pode fazer analogias, é claro, mas, acho que nunca disse isso a ninguém: são duas almas completamente diferentes.
Você acha que pode gerar alguma coisa a partir de uma fricção entre esses dois pensamentos?
Sim. Porque o Barthes é o homem da delicadeza. Isso foi dito aqui, nos seminários. Mas esta Bienal tem pouca obra delicada, na verdade. Eu peguei um espírito do tempo. As pessoas estavam discutindo isso, como viver junto, mas levando os moldes do seminários dele dos anos 1970, e não com a delicadeza que caracterizou Barthes.
Barthes repetidamente se volta para Robson Crusoé.
É, um naufrago... Eu queria ter pensado mais, se eu tivesse mais tempo, se fosse uma Documenta... ter pensado numa bibliografia brasileira e específica. Quando eu convidei o Milton Hatoum, e ele está se mudando para os EUA, eu pensei assim: “Ah, realmente eu gostaria de envolver autores para a gente pensar essa questão”. Eu queria cinema, música, mas também queria literatura, mas seria uma coisa assim, como você vê nas livrarias da França, onde o lançamento de um livro não é um coquetel. O autor lê dez páginas e o público começa a conversar. Era isso que eu queria fazer.
Bravo!:

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