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quinta-feira, março 06, 2008

Entrevista interessantíssima com o grande crítico de arte PAULO STELITA HEKENHOFF

- Paula Lima

Paulo Herkenhoff é um dos principais críticos de arte e curadores do Brasil. Esteve à frente da mais marcante Bienal de São Paulo, a 24ª edição da mostra, dedicada à antropofagia, em 1998, que recebeu rasgados elogios da crítica internacional, foi curador-adjunto do Departamento de Pintura e Escultura do MoMA, em Nova York, da Fundação Eva Klabin Rapaport, da 9º Documenta de Kassel e durante três anos dirigiu o Museu Nacional de Belas Artes (RJ).Hoje é curador independente. Saiu do Museu de Belas Artes entre polêmicas que comprometiam a administração anterior e ataca o Ministro Gilberto Gil, que o convidou para o cargo. "Não ia continuar trabalhando com um stalinista, que emparellha o Museu em função de uma eleição. Dá prioridade a uma obra externa, no lugar de uma obra interna de segurança. Eu não estou no mundo para brincar de política, estou em função da arte", conta.Mestre em direito constitucional pela Universidade de Nova York, Herkenhoff, foi professor de Direito na PUC, mas escolheu aderir a arte. Em Fortaleza para um debate com artistas no Alpendre, dentro da programação do projeto Circuito Intensivo, aprovado no Edital Conexão Artes Visuais MinC/ Funarte/ Petrobrás 2007, Herkenhoff conversou com O POVO.Traça um panorama da arte no Brasil, aponta que a solução para uma produção artística efetiva é uma política de cotas geográficas. "A Lei Rouanet não presta para o Nordeste, o que chega aqui são migalhas que servem muito mais para legitimar a existência da lei do que realmente ajudar no nível que deveria ser a produção dos artistas, a produção do Nordeste".Pela segunda vez na cidade, faz rasgados elogios a produção audiovisual cearense. "O Ceará me ensina a ver vídeo", enaltece. Lamenta a falta de uma universidade e instituições para a formação de artistas e prevê o futuro próximo. "Se continuar essa inércia das instituições em relação a produção contemporânea, se continuar esse marasmo vão acontecer duas coisas: uma dispersão, que já acontece, e por outro lado o Ceará vai conhecer sua arte depois de outros estados e outros países até".O POVO - Qual o espaço ocupado pela arte na vida dos brasileiros?Paulo Herkenhoff - Espaço pequeno, no entanto, não é menos importante por ser pequeno. O que eu acho é que, em termos mais gerais, isso reflete a crise da educação da qual nós saímos e pela qual a geração eletrônica ainda está. Não se pode compreender o processo educativo sem a experiência do olhar, para falar mais amplamente, a experiência do sensível. Digamos, mais do que ser uma causa essa pequena presença da arte na vida das pessoas, corresponde a um sintoma da crise educacional do Brasil. Porque o público se forma desde cedo e as relações com os artistas os sistemas de apoio a medida em que a arte vai sendo posta, conquistando o lugar que se percebe hoje que é necessário para uma cidadania plena. A pessoa que vê melhor, pensa melhor o mundo. Então, de fato, uma das tarefas da educação brasileira é incorporar a arte no processo educacional e aí parte desse desafio vai ser entender as maneiras que isso será feito, porque, evidentemente, tem que se pensar num contexto diverso.OP - De que maneira o senhor acredita que isso deve ser feito?Paulo - Eu acho que tem tarefas que estão sendo aí cumpridas, o Instituto Arte na Educação, da Fundação Iochpe, tem tido um papel extraordinário porque tem trabalhado muito nas universidades brasileiras, então, eu sou otimista de que isso vá melhorar até porque hoje não se pode pensar a cultura sem educação. Se existe uma disponibilidade mais aberta para a música na sociedade brasileira, é porque a música é mais simples, em termos da sua transmissão e de seus conteúdos também, eu acho que hoje a arte ela é muitas vezes posta de lado pelo sistema de poder, e no fundo talvez seja uma das expressões mais envolvidas na construção da má consciência de nossa época.OP - O brasileiro tem um gosto específico ou bem definido por algum tipo de arte?Paulo - Não sei dizer, mas sinto que o brasileiro é mais próximo da música, por várias razões, mas ao mesmo tempo existe uma inteligência visual brasileira que é forte. Tem gerações mais novas, tem tido um processo de avanço, um estabelecimento de intimidade com as tecnologias que é impressionante, então, na verdade, a gente está apenas começando a observar o futuro, porque toda criança que tem acesso a um computador, logo ela terá acesso a cultura visual do computador, porque essa sim é muito forte.OP - Porque a cultura de visitar museu é restrita a visitação turística, passeio de lazer em viagens, nunca o museu da própria cidade?Paulo - É verdade, porque se a gente pensar concretamente, a visitação dos museus brasileiros, é menor que a proporção das cidades. E aí, eu acho que o desafio é esse: as atividades, museus e centros culturais elas não podem se esgotar no próprio financiamento dos eventos, elas tem que pensar na arte. Na arte e na educação, na inclusão. Hoje estamos muito mais ligados a uma cultura de celebridades, que aí tudo o que é célebre entra na mesma sopa, podendo ter alta qualidade ou não. A música clássica não tem o seu lugar, porque nós não temos celebridades em música clássica, ou seja, acho que a gente vive um tempo que ele tem muita imagem, mas ao mesmo tempo ele é obscuro. Há uma certa cegueira.OP - Numa avaliação local, isso significa o que?Paulo - No Ceará, a sensação que eu tenho é que essas instituições precisam ser desestabilizadas, profundamente questionadas, profundamente avaliadas. Se a dinâmica que eles estão adotando corresponde a condição e sobretudo à necessidade de um processo de inscrição da arte na sociedade. Se essa mediação está realmente sendo feita. Porque quem teve dois anos para instalar um sistema educativo e não instalou, significa que não tem competência para dirigir uma instituição. E a pessoa tem que compreender que isso tem um custo, que aquele dinheiro tem um valor social que é justamente estabelecer a conexão com certos sistemas da sociedade para formação de platéia, então a minha visão pode ser um pouco antipática, mas eu sinto que é uma estagnação que não condiz com os artistas. A arte no Ceará ela é extremamente criativa, tem um grupo de artistas que efetivamente tem um porte nacional, estão trazendo contribuição singular, mas existe essa falta de programação. Se falta público a crise não é dos artistas, a crise é de direção das instituições.OP - O que exatamente deveria ser feito pelos dirigentes dessas instituições?Paulo - Eu não tenho receita para isso, porque eu acho que cada contexto tem suas respostas. Mas eu acho que é uma instituição que seja mais permeável à conversa com os artistas, com a comunidade e que seja mais concentrada nesse eixo produção de arte e responsabilidade social com a comunidade, menos dispersa com outras situações. Por exemplo, eu acho que hoje, o sistema brasileiro de incentivo à cultura é extremamente perverso, a Lei Rouanet é uma lei que é uma espécie de colesterol da cultura brasileira, porque ela vem concentrando recursos onde não existem. Então o próprio Ministério da Cultura reconhece que falhou na descentralização, ou não vejo essa descentralização sem um sistema de cotas geográficas. Tem que ter um mínimo de cotas geográficas. Porque não adianta receber exposições que estejam acontecendo fora, porque os museus da cidade não são hotéis, e a gente sabe que hoje em dia há uma economia, um sistema econômico de produzir exposições e levar para circular, mas eu acho que não haverá de fato um avanço, quando também não houver recursos para que os estados do Nordeste, Norte não tenham como fazer suas exposições. Mas isso é um grande desafio que a Lei Rouanet não está dando conta. A Lei Rouanet não presta para o Nordeste, o que chega aqui são migalhas que servem muito mais para legitimar a existência da lei do que realmente ajudar no nível que deveria a produção dos artistas, a produção do Nordeste. Então eu vejo que tem que ter uma palavra chamada redistribuição, se há uma dificuldade de fazer projetos, deveríamos então treinar as pessoas para fazer projetos, porque não é possível haver qualidade, mas não haver recurso, por que? Por causa da condição geográfica? Em 69 aconteceu um manifesto em que artistas diziam que não era possível que um condicionamento econômico acabasse influindo na própria linguagem, por causa dos materiais, dos preços, etc. Então, nós estamos falando de um desequilíbrio que não é só do capitalismo, mas é um próprio desequilíbrio da sociedade brasileira. E aí eu creio que uma articulação do Nordeste, do Norte das regiões que tem tido menos apoio seria muito interessante para buscar uma solução concreta e estável, que não dependa da boa vontade de quem estiver num lugar x ou y. E a processos estáveis.OP - Então a gente pode dizer que o problema da arte no Nordeste é econômico?Paulo - As coisas estão embricadas. Existe uma discriminação Sul em direção ao Norte, em relação à Lei Rouanet. Não se pode deixar que a distribuição dos recursos públicos se baseie num departamento de marketing das empresas com exclusão, porque elas não estão fazendo bem em termos geográficos. Estão fazendo muito mal ao País.OP - Como crítico de arte, qual a avaliação que o senhor faz da produção artística cearense?Paulo - Eu tenho interesse notável por alguns estados brasileiros, porque neles eu encontro artistas que me trazem questões novas e um diálogo, nem que seja por ano ou de seis em seis meses é importante. Quando eu digo que me trazem questões novas, eu digo é estar aberto para que o seu olhar seja transformado pelos artistas. Tem que ter uma porosidade, invés de ser uma barreira que tenha os critérios da verdade, eu acho que o crítico deve ter um olhar poroso para absorver linguagem que ele não conhecia. O que eu tenho visto hoje são muito mais respostas do que eu vi quando vim aqui a primeira vez do que propriamente dizer coisas. Porque as coisas estão aí, estão nos livros, nos debates, mas eu acho que pensar junto certas questões pode ser muito interessante.OP - E o que em específico no Ceará...Paulo - O Ceará me ensina a ver vídeo. Eu acho que tem uma maneira de fazer vídeo aqui que é muito interessante.OP - Que maneira é essa?Paulo - Me chama atenção uma questão chamada liquidez, o trânsito da imagem. Que acho que é diferente de outros lugares. Fotografia e vídeo aqui são muito fortes. Me interessa ouvir os artistas sobre isso.OP - O que de mais interessante surge dessa conversa?Paulo - Eu acho que o vídeo como arte, ele hoje tem um peso muito importante com relação a nova sociedade em que a cabeça das pessoas é totalmente deformada pela televisão comercial. É uma bomba de Hiroshima ou destrói ou deforma, então o vídeo não vai mudar a televisão, mas vai mudar a maneira que eu vejo televisão. E ao mesmo tempo, eu acho que essa situação de estar submetido ao excesso de televisão comercial, uma das maneiras de se resolver é justamente uma produção poética videográfica. Já podemos falar de gerações de artistas do Ceará produzindo vídeo. Isso é muito promissor em termos de uma linguagem do futuro, porque veja bem, se nós pensarmos historicamente, o descompasso do Ceará com relação ao que se produz no resto do País, a gente também pode pensar: e o Brasil em relação ao resto do mundo? Mas é uma história unívoca, a história tinha um caminho, o modernismo tinha um caminho, tinha uma verdade moderna. Ao mesmo tempo, por mais que fosse moderno, essa arte ainda estava pautada no domínio da capacidade de usar criticamente várias técnicas profissionais. A pintura, a gravura, o desenho, e hoje não. Um vídeo é tanto novidade no Ceará quanto no Rio, São Paulo. Quer dizer: não tem mais esse gap. O fato de ter acolá um laboratório super capacitado tecnologicamente, isso não vai criar um gap muito significativo. O que cria gap significativo são as condições financeiras para realizar as idéias, mas a sensibilidade ao vídeo, se a gente pensar que qualquer telefone pode filmar, nós estamos falando de algo que escapa, escapa ao controle. Mas nós aqui temos um curso de arte que foi desmobilizado, um dos cursos mais bem sucedidos do Brasil, da antiga faculdade Gama Filho, porque para mim uma escola de arte de experiência bem sucedida são os artistas que dela egressam, não é a quantidade, é a qualidade. Às vezes saem três artistas, mas esses três valem mais do que 300. Então eu sinto que a experiência aqui é um laboratório daquilo que poderia ser uma universidade de arte, era um processo baseado na experimentação, no questionamento, na dúvida no não-saber e aí explorar, que são valores muito importantes para os artistas. Cada vez menos os artistas querem regras predeterminadas para a construção de linguagem, o mundo hoje não permite uma hieraquização. Como dar conta disso é um desafio muito importante e não vejo uma universidade humanista que dê conta da sociedade, sem ter um olhar para a arte, sem pensar a condição artística. A UFC tem um museu. Uma das poucas que tem museu de arte, então eu fico pensando seriamente o que vai ser do futuro do Ceará em termos de formação dos artistas.OP - Hoje em dia não há luz no fim do túnel?Paulo - Existe uma crise que precisa ser pensada em ternos sociais que é mais ampla. O Alpendre é uma instituição que precisa ser estabilizada, porque vive com muitos percalços de manutenção. E é muito pouco o que o Alpendre precisa para ter essa estabilidade. O que ocorre quando um grupo de artistas se reúne para discutir arte, mas eles tem que correr atrás de pagar a conta de luz? Se continuar essa inércia das instituições em relação a produção contemporânea, se continuar esse marasmo vão acontecer duas coisas: uma dispersão, que já acontece e por outro lado o Ceará vai conhecer sua arte depois de outros estados e outros países até. Porque hoje as coisas acontecem com uma certa rapidez, é comum um artista sair do seu estado, nem passar por Rio e São Paulo e ir direto para outras nacionalidades. Eu tenho certeza, basta um curador estrangeiro razoavelmente aberto a vir ao Ceará, que ele vai descobrir jóias.

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