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domingo, novembro 14, 2010

Escritos importantes sobre o Grande artista ANSELM KIEFER

Anselm Kiefer em meio às ruínas
fonte: Gazeta Mercantil
03 de abril de 1998
Basta você percorrer qualquer bienal, em qualquer parte do mundo, e vai notar que a maioria das pinturas, quando há pinturas, traz um título em comum: "Sem título". Aí você olha de novo para a tela e vê um arranjo (nos herdeiros do Minimalismo) ou desarranjo (nos do Expressionismo Abstrato) de cores e formas sem qualquer referência explícita ao mundo exterior. É uma espécie de autismo assumido. Se alguém usa figuras, é no esquema da Pop Art: assertivo e gráfico.Em meio a esse festival de falta de originalidade, um nome se ergue: o do pintor alemão de origem judaica Anselm Kiefer, 52 anos. A exposição desuas obras que o MAM-SP apresenta no momento é uma confirmação de queKiefer é mesmo, na frase do crítico Robert Hughes, o melhor pintor de suageração. Não que isso signifique muito, dito assim. Mas certamente Kieferserá assunto daqui a bons anos, quando a geração 80 não passar de umrótulo curioso nos livros de história da arte, dentro do capítulo "Comoimpressionar o mercado", e ex-estrelas como Julian Schnabel já estiveremsugadas pelo buraco negro da posteridade. O que Kiefer conseguiu converterem idioma estético foi um recurso formal de que seus contemporâneos usarame abusaram, deixando vasta prole na mídia atual: a textura. Ele usa areia,chumbo, fios, palha, carvão, cartolina, tecido, ferro, etc. em suassuperfícies, carregadas de tinta (a óleo e/ou acrílica, não raro comxilogravura também), distribuídas de forma gestual mas não caótica,coerente mas não homogênea. Usa emulsão, verniz e cola para organizar essematerial, deixando aqui e ali a tinta escorrer, o carvão quebrar, a palhadescolar. Acrescenta objetos ou fragmentos de objetos depois, numa táticaaparentemente arbitrária, como cacos de porcelana, placas de metal eoutros. O resultado é uma pintura em craquelê, quase apontando para suaautodestruição, e uma superposição de camadas em atrito, carbonizadas,sujas, ruidosas. Uma textura de Kiefer é imediatamente reconhecível.E o espectador não precisa de mais nada. Eis uma pintura que fala dederrocada e ressurgimento, de ciclos vitais em fase de transição, a umpasso do mórbido. O tema central de Kiefer não é uma civilização emruínas, mas a idéia de uma civilização em ruínas - a idéia germânica,mítica, romântica, egocêntrica, vernacular, cuja última expressão coesaestá no pensamento de Heidegger. Em Kiefer não há congruência entre o sere o tempo; tudo tende ao corroído e disperso. Por isso ele parte deimagens tradicionais do Romantismo alemão - as paisagens de pedracarregadas de solidez mitológica - e as queima, rasga e polui,literalmente falando. Há várias referências a mitos em sua exposição -mitos gregos, egípcios, hebraicos, mitos de todo tipo - e eles parecemalertar a todos que o heroísmo nacionalista não é privilégio da Germania.Kiefer costuma também escrever frases sobre as pinturas, em geral aspalavras do título da própria tela, para acentuar sua crítica à crençahumana no símbolo, na ancestralidade, na letra da lei.Mas não o imagine um filhote de McLuhan, descrente do verbo e do mito.Kiefer usa fotografias, frequentemente, para também ironizar a arte que sepretende fotográfica, descritiva, puramente objetiva. Sua pintura vivenesse limbo - entre o mitológico e o real, o verbal e o visual, oentrópico e o harmônico - e não finge estar em paz. Daí a força de suasduas grandes telas sobre São Paulo, cidade que fotografou em outra visitae que mostra, pela força da textura, como um mundo em constante recriação,sempre na tangente da auto-anulação. Desse embate entre figura e texturaKiefer extrai sua arte. Você não precisa entender as alusões para captar asensação central do quadro, seu sentido geral. Kiefer não se basta nasuperfície.Nem sempre essa aposta na textura dá resultado, ainda mais quando setrata de um artista que anda no fio da navalha moral, envolto nas névoasde um passado de triste recordação. É difícil. Kiefer é muitas vezesgratuito e redundante, especialmente quando decide adicionar alguma peçasobre a superfície, como o avião que grudou sobre a imagem de São Paulo.Mas tratar a textura como signo, como parte integrante do significado dapintura - não da forma harmonizadora que se tem em Matisse ou Warhol, esim perturbadora -, é seu achado e legado. (Um pintor brasileiro, DanielSenise, está entre os que entenderam a grandeza de Kiefer.) O ser humanoquase não aparece em suas pinturas, mas é impossível não se encontrarnelas, ainda que amargas, quase moralistas. Uma cultura não existe semmitos. Fica mais difícil, depois de Kiefer, acreditar em renascer dascinzas. Mas pelo menos sabemos que ruínas não são coisas do passado.

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