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segunda-feira, agosto 03, 2009

SÉRGIO LUCENA

Fiquei tão impressionado com o quadro “A Nave”, em 1995, que - mesmo sem conhecer o autor -, liguei para cumprimentá-lo. O impacto que me causa a massa escura e poderosa do transatlântico vindo em meio à noite, no espaço imenso do mar aberto, é enorme. O mesmo se dá com a conversa entre os ligadíssimos irmãos Théo e Van Gogh, no leito de morte de Vincent, recriada por ele. Sem falar que o vazio inconcebível, que ele concebeu em torno de João clamando no deserto, me deixa pasmo. Mas minha admiração pela sua obra vem de longe. Começou com a visão, em 86, da maravilhosa tela que é “A Pedra do Reino” (na Funesc), quando ele povoou com suas minúsculas figuras de Ensor, a vasta paisagem de Altdorfer pintada por Flávio Tavares. Sintomaticamente, é o mundo cavaleiroso e circense de Ariano Suassuna, numa Paraíba, como disse Bráulio Tavares, “alucinada e lancinante” - com suas gerações de Cangaceiros, de rudes Beatos e de Profetas (sob a respiração “dessa estranha Fera, a Terra”) -, que prolifera por essa época no trabalho de Sérgio Lucena, declaradamente influenciado pelos picadeiros de circo, pelo teatro mambembe, por Bruegel, o velho, e por Bosch, por Ensor, é claro, pelas ilustrações de Doré para o Quixote de Cervantes, e, sem dúvida, pela poesia libertadora de Zé Limeira, pai de toda essa gente fabulosa que tem, no seu meio, Zé Ramalho, Miguel dos Santos, Fred Svendsen e Vital Farias. Típico da busca incessante que já o fizera abandonar os cursos de física e psicologia, que já o levara a morar na Chapada dos Guimarães e há passar um ano em Berlin (a convite da Deutsch-Brasilianische Kulturelle Vereinigung), vivendo agora em São Paulo, Lucena passa, naqueles distantes anos 80, da tinta acrílica para o óleo, em busca de mais cor e luminosidade, avisando que, a partir de então, a luz era a essência de sua demanda. “Paradoxalmente – observa naquele tempo – minha pintura tornou-se cada vez mais sombria”. De fato, seu fantástico João Batista - vox clamantis in deserto - poderia se chamar lux in tenebris. E o que temos aqui, de repente, em plenos Séculos XX e XXI, é justamente uma nova edição do tenebrismo - a exacerbação da técnica do chiaroscuro (claro-escuro) - praticado por Caravaggio, que influenciou uma série de pintores notáveis como Artemisia Gentileschi, Zurbarán, José de Ribera e Rembrandt nos séculos XVI e XVII. Ah: Rembrandt e Artemísia. Isso me lembra o quadro “Artemisa”, do mestre do Reno, que vi em 94, no Museu do Prado, em Madri. Foi da luz extraordinária que emana dele que me lembrei ao receber as fotos que Sérgio Lucena me enviou, por e-mail, de uma série de quadros novos seus - produzida já na capital paulista - em que o tema é sempre o mesmo: a claridade ou aura produzida por animais que parecem ter saído do Livro dos Seres Imaginários, de Borges. A sensação exata de espaço, a tridimensionalidade que parece existir dentro “Las Meninas”, de Velázquez, e a claridade absolutamente real que existe no trabalho do holandês, ambos en el Prado, me fizeram compreender, definitivamente, que os gênios levam a arte a um tal nível, que ela passa por pura magia. Contrariamente, entretanto, ao pré-impressionismo com que trabalhavam Velázquez e Rembrandt, Sérgio Lucena está ministrando tal detalhismo na textura surrealista desses “bichos”, que só encontro equivalência dele num Ivan Albright, pintor americano (www.cegur.com/html/frameAlbright.html), que fazia tal elaboria nas rugas da pele e das roupas, das jóias e das flores de seus retratados, que acabou por transformá-la num espetáculo único à parte. Sempre encarei a Arte como algo em que os discípulos superam os mestres, como no caso de Leonardo ao incluir seu anjo no “Batismo” de Verrocchio, fazendo-o desistir da pintura para se dedicar exclusivamente à escultura. Sérgio Lucena está produzindo esse anjo. Silêncio é a única coisa que podemos fazer diante disso.

W.J.Solha é escritor, poeta, ator e artista plástico

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